Tenho essa coisa com a aparência das minhas mãos porque são brancas demais, têm essas veias azuis saltadas e são brutalmente secas. Recentemente, pra piorar, apareceu aqui uma pinta que não é uma pinta, nem uma verruga, nem uma bolinha. É uma coisinha áspera e vermelha no deserto azul e branco da minha mão esquerda.
Pouco mais dramáticas que a pele, que as veias e que as sardas, no entanto, são as unhas que trago aos dentes desde pequena.
Nasci com as mãos na boca e nunca mais as tirei.
Chupei os dedos até os 4 anos, quando grandes calos me cobriram as juntas.
Depois, roí as unhas até que lhes passaram pimenta.
Aí comecei a arrancar pequenas lascas com a mão oposta e usar a boca para tirar apenas os pedaços mais teimosos.
Desde então as mantenho assim: pequenas, bobas e machucadas.
Eu tinha quase dez anos e houve esse dia, quando Olga, amiga da minha mãe, veio nos visitar.
Olga tinha sido Miss. Miss Joaçaba. Miss Joaçaba, Santa Catarina, Brasil.
Era muito loira, a Olga. Olhos azuis, muito magra, muito alta e princesa. E as mãos de Olga eram um sonho.
Naquela tarde de bolinho de chuva, Olga chamou a atenção para as minhas mãos.
Disse que roer as unhas era coisa de criança e que aquilo não era mão de mocinha. “Veja as minhas. Agora veja as suas…”.
Que diferença, Olga. Não tinha comparação.
E ela ainda completou: “…as suas são feias”.
Sempre foram. Hoje, em especial, são piores do que seriam se o problema fosse apenas a unha roída porque, além de pequenas e frias, de terem os dedos tortos e tantas sardas, ganharam rugas e uma tensão ansiosa que me retesa as articulações. Você as odiaria, mas talvez entendesse que estão assim porque são também ringue do tempo: pele de velha com unha de criança.
As pessoas lutam contra o tempo de diferentes formas. Umas brigam contra os tornozelos inchados no calor dos 37°. Outras, contra pêlos em lugares indevidos ou um sistema de fígado/estômago que já não digere bem o alho. Eu luto contra as mãos porque em mim é nelas que o tempo corre mais rápido. É também com elas que luto para pegar os anos pela garganta — uma batalha perdida. De deserto branco, azul e vermelho ainda querem ser mar, teimosas contra o inevitável.
Mas elas estão no caminho, Olga: ativas e satisfeitas na maior parte do tempo. Ganharam uma tendinite e continuam invejosas dos dedos longos e de unhas compridas que veem em outras mãos femininas. Reparo muito nisso, com foco em atendentes de banco ou supermercado que teclam com mãos hábeis, enfeitadas, esmaltadas e orgulhosas, iguais as suas. Talvez sintam-se, todas elas, tão pequenas, bobas e machucadas quanto eu e, mais espertas, escondam os indícios de suas dores em lugares menos evidentes.
Nas minhas mãos, entretanto, contra a minha vontade, seguem expostos os anos, meus defeitos, medos e feridas. Dizem de mim e contra mim, mas só dizem verdades — nisso, alguma vantagem hão de ter. Não enganam ninguém.
Talvez tenha sido isso o que você tenha tentado me dizer lá atrás: que ninguém deve se mostrar tanto em verdades inconscientes.
Entendo, mas não evito. Sigo denúncia de mim mesma.
Paciência, Olga. Paciência.


Vanessa Vascouto (Chapecó, 1983). Dramaturga, romancista e poeta, não venceu nenhum prêmio. Ainda.


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